“Na madrugada do dia 04 para 05 de novembro de 2025, as comunidades indígenas Kaiowá de Pyelito Kue e de Mbarakay, no cone sul do Mato Grosso do Sul, ao tentarem retornar aos territórios de ocupação tradicional de onde haviam sido expulsas, viram-se novamente alvo de ataques a tiros, pela segunda vez em menos de três dias.
Ambas comunidades já haviam tentado retornar aos seus territórios em 2012, quando se tornaram protagonistas de uma resistência a ataques armados, que mobilizou a opinião pública na campanha com o mote “Somos todos Kaiowá”. Após esta mobilização, a Terra Indígena Iguatemipegua I, que engloba os tekoha (ou seja, as terras) de Pyelito Kue e de Mbarakay, foi reconhecida oficialmente pelo Estado, em publicação no D.O.U. em 2013. Porém, até o momento encontra-se sem ser demarcada.
Passados doze anos daquela publicação oficial e sem verem avançar os meios formais para voltar a ocupar seus tekoha (lê-se “tekorrá”), as comunidades decidiram não esperar mais e voltaram.
É de fundamental importância ter em conta que para as comunidades Kaiowá (lê-se “kaiová”) seus tekoha são seus suportes de vida, que lhes foram entregues na origem do mundo pelas divindades, para que dela fizessem bom uso e cuidassem.
A vida, portanto, fora dos tekoha é uma subvida, geradora de perturbações e de doenças, tanto nos indivíduos que compõem estas comunidades quanto nelas próprias, coletivamente. Acresce-se a isto o uso indiscriminado de agrotóxicos nas monoculturas de exportação que as cercam, poluindo-se as águas e os cultivos dos indígenas, num estado cujo nome de Mato Grosso (do Sul) hoje conta, em seu Cone Sul, com uma vegetação nativa que não ultrapassa a média de 2% da cobertura original, além de um racismo endêmico e de uma extrema morosidade nos processos de demarcação, pela pressão do agronegócio.
Este encontra-se seja representado fortemente por políticos do estado, seja organizado em sindicatos, atuando com repressão privada armada e contando com suporte das forças policiais locais. Neste clima geral, veículos de informação como o Repórter Brasil, além do Conselho Indigenista Missionário relatam denúncias dos indígenas de ataques a tiros, espancamento e outras violências, físicas e psicológicas.
Registra-se, igualmente, que apenas há pouco mais de uma semana, outro caso, o da comunidade de Guyraroka, que também aguarda a demarcação de sua terra, resultou em um episódio de nível máximo de conflito, com reação da comunidade justamente ao uso do agrotóxico, a afetar a saúde de suas famílias.
Após mais estes ataques, que se juntam a uma série longa e constante de outros, a ABA, através da sua Comissão de Assuntos Indígenas e do Comitê de Laudos Antropológicos, vem manifestar profunda preocupação com a possibilidade que se avizinha de que os ditames constitucionais, que preveem a garantia, pelo Estado brasileiro, do direito à demarcação das terras de ocupação tradicional, sejam desrespeitados, ajudando a promover a continuidade da violência contra os indígenas.
Na prática, estes ditames significam que Executivo, Legislativo e Judiciário têm a tarefa constitucional de garantir aos povos indígenas o acesso aos seus territórios de uso e ocupação tradicional, e o direito à vida com dignidade neles, “segundo seus usos, costumes e tradições”, como estabelecido no Artigo 231 da Constituição. Por todo o exposto, com suas ações os Kaiowá demonstram que este preceito deve ser um imperativo instransponível, em termos legais, mas também morais, em nosso país.
Nesses termos, a ABA, ao tempo que demanda a profunda investigação dos atos de violência aqui apontados, e a tomada de providências correlatas pelas forças de segurança pública e de direitos humanos do Estado brasileiro, demanda igualmente à Presidência da República, ao Ministério dos Povos Indígenas, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal que, em seus papéis institucionais perante os Kaiowá, velem pela Constituição, garantindo integralmente a demarcação de suas terras tradicionalmente ocupadas.”









