CPI revela desordem institucional, bilhões lavados e forças de segurança desintegradas operando no escuro
Foram necessários só 40 dias para que a CPI do Crime Organizado apresentasse ao país um diagnóstico perturbador: o Brasil perdeu o comando mínimo sobre seu território para facções, enquanto o governo federal, sob o argumento de preservar o pacto federativo, abdicou de exercer papel central na coordenação efetiva na segurança pública.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, admitiu durante depoimento na CPI do Crime Organizado que o governo federal não possui recursos financeiros nem integração adequada para combater as facções criminosas, especialmente nas fronteiras. A situação é particularmente crítica em Mato Grosso do Sul, importante corredor do narcotráfico sul-americano. A CPI revelou que as organizações criminosas, como PCC e Comando Vermelho, já operam como corporações transnacionais, com presença em todos os estados brasileiros. O ministro destacou a falta de comunicação entre as forças de segurança e a necessidade de uma emenda constitucional para tornar obrigatório o compartilhamento de inteligência entre as instituições.
Responsável pela pasta, o ministro da Justiça e Segurança, Ricardo Lewandowski, admitiu em depoimento que, na prática, o Estado não tem dinheiro, não tem integração e não dispõe do básico para enfrentar o crime organizado, especialmente nas fronteiras de Mato Grosso do Sul, hoje um dos principais corredores de cocaína da América do Sul. Ao ser questionado sobre o que seria necessário para uma atuação mais contundente, ofereceu uma resposta desalentadora: “a resposta para esta questão é… dinheiro, dinheiro, dinheiro e mais dinheiro”. A CPI mostrou que nem isso existe.
A fala reforçou a impressão de que o governo Lula 3 carece de vontade política e de um projeto estruturado para enfrentar o crime organizado. Lewandowski, que lutou para manter a segurança pública como secretaria do Ministério da Justiça, em vez de ministério autônomo, como prometera Lula, vê seu espaço de ação na Esplanada encolher.
Ele citou duas fraudes reveladas neste ano, uma envolvendo o Banco Master e outra na Operação Carbono Oculto, nas quais o crime organizado teria lavado em ativos financeiros cerca de R$ 40 bilhões, valor mais de dezenove vezes superior aos R$ 2,1 bilhões do Fundo Nacional de Segurança Pública divididos entre os órgãos de combate ao crime. Para piorar, outros R$ 400 milhões destinados à área foram contingenciados pela equipe econômica.
A Babel institucional
Em meio à expansão do PCC e do Comando Vermelho pelo Paraguai e pela Bolívia, processo que transformou a rota sul em plataforma industrial do narcotráfico, Lewandowski reconheceu que as forças de segurança brasileiras sequer se comunicam. “Polícia Civil não troca informação com a Polícia Militar; a PF não troca com a Polícia Penal Federal e muito menos com a Polícia Rodoviária Federal. São sistemas isolados, que não se conversam.”
Para superar essa torre de Babel institucional, o ministro afirmou ser indispensável uma emenda constitucional que torne obrigatório o compartilhamento de inteligência, algo que nunca existiu e que, embora reconhecido como urgente, o governo ainda não conseguiu formular. “Sem uma emenda constitucional que estabeleça a obrigatoriedade no compartilhamento de dados, nós não vamos avançar”, disse.
O alerta coincide com estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrando que PCC e CV já operam como corporações transnacionais, com hegemonia em 13 estados e presença consolidada em todas as 27 unidades da federação. No mapa criminal revelado pela pesquisa, Mato Grosso do Sul desponta como importante hub estruturante do império construído pela cocaína.
O deputado estadual Carlos Alberto David dos Santos, coronel Davi (PL), que foi comandante da PM, porém, contesta Lewandowski quando o assunto é a realidade sul-mato-grossense. Afirma que a integração existe e funciona no Estado, mas não por orientação federal: ela se deve ao alinhamento pessoal entre o comando da segurança estadual e os superintendentes da PF e da PRF. Esse arranjo, segundo ele, explica por que MS historicamente lidera apreensões e monitora a atividade de PCC e CV na fronteira.
O Estado sozinho na fronteira
Davi acusa o ministro de desconhecer a dinâmica real da segurança pública e de minimizar o protagonismo dos estados no enfrentamento ao crime. Alega que o governo federal “não participa com nada”, deixando que o Estado arque sozinho com encarceramento, viaturas, armas, munição e tecnologia, quase sempre financiados por emendas parlamentares, não por repasses regulares. Para ele, ao admitir que não consegue integrar sequer seus próprios órgãos e ainda carece de recursos, Lewandowski expõe uma gestão que “não entende de segurança”.
O parlamentar afirma que o PCC está na região desde 2006 e que isso deveria ter ampliado, e não reduzido, o protagonismo federal. Para completar, defende uma presença mais efetiva do Exército na faixa de fronteira e a retomada de sistemas de vigilância militar, como o Sisfron (Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras), cujos repasses foram interrompidos ou sofreram descontinuidade diante do olhar contemplativo do governo federal. Especialistas concordam que esse vácuo institucional explica por que MS, corredor logístico da rota sul, se tornou terreno fértil para o avanço das facções.
Mato Grosso do Sul está no núcleo desse desalinho federal. Pelo Estado passa uma fração significativa da cocaína que abastece o Brasil e o exterior. Pelos cálculos das alfândegas, as apreensões representam apenas cerca de 5% do total que entra no país, antes de seguir para os mercados internacionais. No mês passado, uma única carga de 454 quilos foi estimada em R$ 40 milhões. Extrapolado pelo fluxo real, o lucro anual das facções chega a cerca de R$ 50 bilhões, o dobro do orçamento anual de Mato Grosso do Sul. O crime tornou-se mais rico, mais líquido e mais capilar, enquanto o Estado permanece mais frágil.
A lavanderia institucional
A CPI evidenciou não apenas um colapso orçamentário, mas estrutural e de legitimidade. A sessão em que Lewandowski depôs transformou-se no que um senador chamou de “lavanderia institucional”: acusações cruzadas, insinuações éticas, ataques entre poderes e denúncias que escorreram do Judiciário ao Parlamento como matéria orgânica exposta ao sol. “A culpa é de todos nós. Perdemos o rumo. Aqui dentro mesmo foram cometidos diversos crimes, roubos, desvios, e nada acontece neste país”, disse o senador Jaime Bagattoli (PL-RO).
O relator da CPI, o senador Alessandro Vieira, delegado de carreira, ampliou o constrangimento ao atualizar o “placar de escândalos” envolvendo autoridades do Judiciário: citou a viagem do ministro, Dias Toffoli, do STF, em jatinho de investigado no caso Master e o contrato de R$ 129 milhões entre o banco e o escritório da família de outro ministro, neste caso o relator da ação que foram condenados os autores da tentativa de golpe, Alexandre de Moraes. As revelações expuseram um sistema permeado por fissuras que facilitam o avanço do crime organizado.
Vieira e o presidente da comissão, Fabiano Contarato, também delegado, converteram a CPI em polo técnico num ambiente dominado por retórica. Da articulação surgiram negociações com a área econômica, que resultaram na criação da Cide-Bet, fundo que deverá destinar R$ 30 bilhões anuais ao combate às facções, iniciativa histórica na área de segurança pública. A medida integra o novo relatório do PL Antifacção, relatado por Vieira e aprovado pelo Senado na quarta-feira (10 de novembro) à noite.
A proposta endurece penas (15 a 30 anos), aplica-as também a milicianos, reforça instrumentos de investigação como infiltração policial e empresas de fachada, protege jurados e impede indulto para chefes de facções. Corrige ainda dispositivos inconstitucionais do texto da Câmara, alinhando-o ao diagnóstico da CPI.
O país no limite
Saíram de Vieira e do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) os questionamentos que pressionaram Lewandowski a reconhecer que o Estado brasileiro não tem inteligência integrada, orçamento suficiente nem arcabouço legal mínimo para disputar território com facções que operam com disciplina militar e receita bilionária. Exército e Abin também atuam isolados. “O crime está avançando… Hoje as forças de segurança estão no córner”, disse o ministro.
Mais revelador que as propostas foi o retrato institucional: um Estado que desconhece parte do que ocorre em seu território; fronteiras entregues ao narcotráfico; inteligência fragmentada; polícias que não se comunicam; poderes que precisam enfrentar seus próprios vícios antes de enfrentar o crime. Nesse cenário, as facções deixam de ser meras organizações prisionais e se tornam conglomerados capazes de disputar mercados, territórios e instituições, e de transformar a fronteira sul em seu principal ativo logístico.
O crime prospera nessas brechas. Ali, a República já não exerce soberania plena e, como admitiu o ministro, não exercerá enquanto o país não reorganizar seu sistema de segurança, reescrever dispositivos constitucionais e financiar o básico. Soma-se a isso até a falta de compreensão sobre a gênese de PCC e CV, nascidos nas cadeias, mas com sutil estilo de barganha política com a qual controla e dá as ordens no sistema prisional.
O diagnóstico foi feito pelo próprio ministro que tem a obrigação de combater o crime. Falta decidir o que fazer com ele.











